Em meio à sofisticação da Bossa Nova, à crítica velada da MPB pós-64 e à psicodelia do Tropicalismo, uma figura singular surgiu para chutar o balde de todas as convenções. Raul Seixas (1945-1989), o "Maluco Beleza" de Salvador, foi um profeta, um filósofo, um roqueiro e um nordestino arretado, tudo ao mesmo tempo. Ele não se encaixava em nenhum movimento e, por isso mesmo, criou o seu próprio universo, fundindo o rock'n'roll mais visceral com o baião de Luiz Gonzaga e o misticismo de Aleister Crowley.
A Fusão Improvável: Rock com Baião
Raul cresceu na Bahia ouvindo duas coisas que, para muitos, eram mundos opostos: o rock primitivo de Elvis Presley e Little Richard, que chegava pelo rádio, e o baião de Luiz Gonzaga, que ecoava por todo o Nordeste. Para Raul, essa mistura não era uma contradição, mas a sua própria identidade. Ele foi, talvez, o primeiro artista a realizar de forma tão potente a fusão que o Tropicalismo havia teorizado.
Como vimos na série "História do Rock", o rock'n'roll nasceu de uma base de três acordes maiores e um ritmo contagiante. Raul dominava essa linguagem perfeitamente. No entanto, ele a temperava com o ritmo sincopado do baião e do xote, criando algo que ele mesmo chamou de "Baioque". Em canções como "Ouro de Tolo", a estrutura pode parecer um folk de Bob Dylan, mas a atitude e a narrativa são inconfundivelmente brasileiras. Em "Asa Branca", ele não apenas regravou o clássico de Luiz Gonzaga; ele o fez com a pegada e a urgência do rock.
Raul Seixas: o "Pai do Rock Brasileiro", que misturou a guitarra de Elvis com a sanfona de Gonzagão.
O Profeta Anárquico: Parceria com Paulo Coelho
A música de Raul Seixas era inseparável de sua filosofia. Sua parceria com o então letrista e futuro escritor Paulo Coelho foi fundamental para a criação de um corpo de trabalho que ia muito além do entretenimento. Juntos, eles mergulharam no ocultismo, na filosofia e em sociedades secretas, extraindo daí a base para a "Sociedade Alternativa", um conceito de comunidade anárquica baseada na máxima do bruxo Aleister Crowley: "Faze o que tu queres, pois é tudo da Lei".
Canções como "Sociedade Alternativa", "Gita" e "Tente Outra Vez" não eram apenas músicas; eram hinos motivacionais, convites à autorreflexão e ao questionamento de todas as autoridades, fossem elas o governo, a religião ou a própria indústria cultural. Isso, em plena ditadura militar, era um ato de extrema ousadia, o que lhes rendeu problemas com a censura e até mesmo uma breve prisão e exílio.
"Eu que não me sento / No trono de um apartamento / Com a boca escancarada cheia de dentes / Esperando a morte chegar / Porque longe das cercas embandeiradas / Que separam quintais / No cume calmo do meu olho que vê / Assenta a sombra sonora de um disco voador."
- Raul Seixas, em "Ouro de Tolo" (1973)
O Legado do "Maluco Beleza"
Raul Seixas nunca foi uma unanimidade na crítica de sua época, que muitas vezes o considerava "brega" ou "confuso". No entanto, ele se comunicou diretamente com um público jovem e marginalizado que não se via representado nem na MPB "cabeça", nem no rock estrangeiro. Ele falava a língua do povo, com gírias, humor e uma sinceridade brutal.
Seu legado é o de um artista que provou que era possível ser profundamente brasileiro e um roqueiro autêntico. Ele abriu as portas para o rock nacional dos anos 80 e sua figura messiânica continua a conquistar novas gerações de fãs. O grito "Toca Raul!" é mais do que uma piada em shows; é a prova da permanência de um artista que se recusou a ser colocado em qualquer caixa e que, por isso mesmo, se tornou eterno.
O universo de Raul: uma mistura de rock, misticismo e filosofia que desafiou todas as convenções.
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