Em um país de dimensões continentais, a música sempre foi um reflexo das diversas "Brasis" que existem dentro do Brasil. Se o samba nasceu na cidade e o Clube da Esquina nas montanhas, a alma musical do sertão nordestino foi forjada no som da sanfona de um homem: Luiz Gonzaga (1912-1989). Conhecido como o "Rei do Baião", Gonzaga fez muito mais do que criar um gênero musical de sucesso. Ele foi um cronista, um porta-voz que apresentou ao resto do país a cultura, as lutas e a resiliência do povo nordestino.
A Invenção do Baião: A Santíssima Trindade Nordestina
Quando Luiz Gonzaga chegou ao Rio de Janeiro nos anos 40, tentou a sorte tocando os sucessos da época: valsas, choros e tangos. O sucesso só veio quando ele, seguindo o conselho de um estudante cearense, decidiu abraçar suas raízes e tocar a música de sua terra. Ele então formatou o som que o consagraria, baseado no que chamou de "santíssima trindade" instrumental do sertão: a sanfona, o triângulo e a zabumba.
Essa formação rítmica era a base para o Baião, um gênero de ritmo contagiante e estrutura simples. Como vimos na série "Desvendando a Música", o ritmo é o coração da música. O Baião tem uma pulsação marcante, com um padrão rítmico sincopado que é instantaneamente reconhecível e que convida à dança. A sanfona de Gonzaga, por sua vez, executava melodias que remetiam tanto às festas juninas quanto aos lamentos da seca, com uma técnica e um vigor impressionantes.
Luiz Gonzaga, o "Rei do Baião", que com sua sanfona e sua indumentária de cangaceiro, tornou-se o símbolo do Nordeste.
O Cronista do Sertão: Parcerias com Humberto Teixeira e Zé Dantas
A genialidade de Gonzaga se completou com a chegada de seus grandes parceiros letristas. Com o advogado cearense Humberto Teixeira, ele compôs o hino "Asa Branca" (1947). A canção, que descreve a dor do retirante que foge da seca, mas promete voltar, tornou-se um segundo hino nacional, um símbolo da saudade e da esperança nordestina. A melodia triste sobre uma base rítmica dançante criava uma dualidade que era a própria cara do sertão: a capacidade de dançar sobre a própria tragédia.
"Quando oiei a terra ardendo / Qual fogueira de São João / Eu perguntei a Deus do céu, ai / Por que tamanha judiação? (...) Inté mesmo a asa branca / Bateu asas do sertão / Entonce eu disse, adeus, Rosinha / Guarda contigo meu coração."
- Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, em "Asa Branca" (1947)
Com o médico pernambucano Zé Dantas, Gonzaga aprofundou sua veia de cronista do cotidiano. Juntos, eles compuseram "A Volta da Asa Branca", "O Xote das Meninas" e "A Vida do Viajante", canções que descreviam com poesia e precisão os costumes, as festas e a vida do homem do campo. Gonzaga não cantava apenas sobre o Nordeste; ele cantava para o Nordeste, usando uma linguagem e temas que seu povo reconhecia imediatamente.
O Legado: O Pai de Todos
O sucesso de Luiz Gonzaga nos anos 40 e 50 foi avassalador. Ele se tornou um dos maiores vendedores de discos do país e uma estrela do rádio, levando sua música a todos os cantos do Brasil. Seu legado é imensurável e transcende o próprio Baião. Ele é uma figura paterna para quase todos os grandes artistas nordestinos que vieram depois dele.
Gilberto Gil, em sua fase tropicalista, regravou "Asa Branca". Raul Seixas, como veremos no próximo artigo, fundiu o rock com o baião. Alceu Valença, Elba Ramalho e Zé Ramalho beberam diretamente na fonte de Gonzaga para criar o rock rural e a nova música nordestina dos anos 70 e 80. Ao dar voz e forma à cultura do sertão, Luiz Gonzaga não apenas inventou um gênero, mas reforçou a identidade de uma região inteira, provando que a música mais autenticamente regional pode se tornar universal.
O sertão: a paisagem e a cultura que Luiz Gonzaga transformou em música universal.
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