No final dos anos 50, a agitação cultural tomava conta do Rio de Janeiro. Era uma época de otimismo, modernidade e uma nova arquitetura que redesenhava a cidade. Nesse cenário, um grupo de jovens músicos da Zona Sul, insatisfeitos com o drama do samba-canção da época, começou a se reunir para criar algo novo. Eles buscavam um som mais leve, mais íntimo e harmonicamente mais sofisticado. O resultado foi a Bossa Nova, uma revolução que começou em um apartamento e conquistou o mundo.
João Gilberto: O Arquiteto da Batida
No centro dessa revolução estava um baiano genial e obsessivo: João Gilberto (1931-2019). Ele não foi o inventor da Bossa Nova, mas foi seu principal arquiteto e codificador. A grande inovação de João estava na forma como ele unia voz e violão, criando uma unidade rítmica e harmônica nunca antes ouvida. Sua contribuição pode ser dividida em três pilares:
- A Batida do Violão: Este é o elemento mais icônico. João Gilberto pegou o ritmo sincopado do samba e o sintetizou no violão. Enquanto seu polegar marcava a pulsação nos baixos (como um surdo), seus outros dedos "beliscavam" os acordes em um padrão rítmico complexo e deslocado, criando uma cama rítmica completa. Era uma orquestra de samba em um único instrumento.
- O Canto "Sussurrado": Em uma era dominada por vozes potentes e impostadas, João cantava baixo, quase como um sussurro, sem vibrato e com uma precisão rítmica absoluta. Sua voz não flutuava sobre o violão; ela dançava dentro do ritmo criado por ele.
- A Harmonia Sofisticada: João e seus contemporâneos mergulharam na harmonia do jazz americano. Como vimos na série "Desvendando a Música", os acordes básicos (tríades) podem ser enriquecidos. A Bossa Nova popularizou o uso de acordes com sétimas, nonas e dissonâncias, criando uma sonoridade mais rica e "jazzística" que era, ao mesmo tempo, incrivelmente brasileira.
O disco Chega de Saudade, lançado por João Gilberto em 1959, é o marco zero, o manifesto dessa nova estética.
João Gilberto, o gênio que sintetizou a batida do samba no violão e redefiniu o canto popular brasileiro.
Tom Jobim e Vinicius de Moraes: A Melodia e a Poesia
Se João era a batida, Antônio Carlos "Tom" Jobim (1927-1994) e Vinicius de Moraes (1913-1980) eram a alma melódica e poética. Tom Jobim, um maestro e compositor de formação clássica, foi profundamente influenciado por Pixinguinha, mas também por compositores eruditos como Debussy e Villa-Lobos. Ele foi o principal criador das melodias e harmonias que se tornariam o padrão da Bossa Nova.
Vinicius, por sua vez, já era um poeta consagrado. Ele trouxe para as letras da Bossa Nova uma linguagem coloquial, mas imensamente poética, falando do amor, do cotidiano, da beleza do Rio de Janeiro e de uma melancolia sutil. A parceria entre Tom e Vinicius produziu a maior parte do repertório clássico do gênero, incluindo a canção brasileira mais famosa de todos os tempos, "Garota de Ipanema".
"Minha música é essencialmente melódica e harmônica. O ritmo, para mim, é uma consequência... A gente tem que ter a modéstia de saber que o Pixinguinha já fez tudo. A gente só está limpando, limpando, limpando."
- Tom Jobim, em entrevista ao Jornal do Brasil, 1967.
A dupla imortal: Tom Jobim e Vinicius de Moraes, responsáveis pela melodia e poesia que encantaram o mundo.
A Bossa Nova foi a primeira vez que a música popular brasileira causou um impacto global massivo, influenciando o jazz americano e artistas em todo o mundo. Ela provou que a música brasileira podia ser, ao mesmo tempo, popular e sofisticada, rítmica e complexa. No entanto, o otimismo da Bossa Nova logo seria confrontado por uma realidade política mais dura no Brasil, o que levaria a uma nova geração de músicos a usar suas canções não apenas para falar de amor, mas para lutar por liberdade.
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