A Invenção do Brasil Sonoro: O Choro de Pixinguinha e o Samba de Noel Rosa

No início do século XX, o Brasil vivia uma intensa busca por sua identidade cultural. Enquanto a Europa ditava as regras da "alta cultura", nos subúrbios e nas ruas do Rio de Janeiro, uma revolução sonora estava em andamento. Dois gênios, com estilos e origens distintas, seriam os arquitetos fundamentais do que hoje entendemos como música brasileira: Pixinguinha, o maestro que deu ao Choro sua forma definitiva, e Noel Rosa, o poeta que deu ao Samba sua alma urbana e filosófica.

Pixinguinha: O Virtuose que Organizou a Genialidade

Alfredo da Rocha Vianna Filho, o nosso Pixinguinha (1897-1973), foi a ponte entre a música popular e a erudição. Nascido em um ambiente musical, ele era um virtuose da flauta e, mais tarde, do saxofone. Sua genialidade não estava apenas em sua capacidade de improviso, mas em sua visão de arranjador. Ele pegou o Choro – um gênero instrumental que nasceu da mistura de ritmos africanos com danças de salão europeias (como a polca) – e o elevou a um novo patamar de sofisticação.

Em 1919, ele fundou o grupo Os Oito Batutas, que se tornou uma sensação não só no Brasil, mas em Paris, onde passaram seis meses em 1922. Eles eram a prova viva de que a música brasileira tinha um valor artístico imenso. Pixinguinha introduziu uma complexidade harmônica e contrapontística ao Choro que era inédita. Como vimos em nossa série "Desvendando a Música", o contraponto é a arte de entrelaçar diferentes melodias que se complementam. O que Pixinguinha fazia com seu saxofone, criando uma segunda melodia que dialogava com a principal, tornou-se uma marca registrada do Choro moderno.

A admiração por sua obra é um consenso entre os maiores nomes da música brasileira. A influência de Pixinguinha é tão profunda que o dia de seu nascimento, 23 de abril, foi oficialmente instituído como o Dia Nacional do Choro. Sua composição "Carinhoso", por exemplo, foi criada como um choro instrumental por volta de 1917 e só recebeu letra décadas depois, em 1937, por João de Barro, tornando-se um clássico imortal.

Pixinguinha tocando seu saxofone, em uma foto clássica em preto e branco.

Pixinguinha, o maestro que elevou o Choro à categoria de arte, influenciando toda a música brasileira que viria depois.

Noel Rosa: O Filósofo do Samba

Se Pixinguinha foi o arquiteto da estrutura musical, Noel Rosa (1910-1937) foi o cronista da vida e da alma carioca. Vindo da classe média de Vila Isabel, o "Poeta da Vila" viveu intensamente a boemia e as ruas, e transformou suas observações em sambas de uma inteligência e ironia incomparáveis. Ele foi fundamental para tirar o samba do estigma de música marginalizada dos morros e levá-lo para o asfalto e para o rádio, o grande meio de comunicação da época.

A grande revolução de Noel foi na letra. Ele abandonou os temas genéricos e passou a criar crônicas sociais, pintar retratos de tipos urbanos e fazer críticas sutis aos costumes da época. Em sua famosa canção "Com que Roupa?", de 1930, ele capturou com humor o sentimento de uma crise financeira pessoal e coletiva, um tema universal. O biógrafo e pesquisador Jairo Severiano destaca que Noel inaugurou uma nova fase no samba, onde a melodia e a letra passaram a ter uma interdependência muito maior, com a música servindo perfeitamente à narrativa.

"Agora vou mudar minha conduta / Eu vou pra luta, pois eu quero me aprumar / Vou tratar você com a força bruta / Pra poder me reabilitar / Pois esta vida não está sopa / E eu pergunto: com que roupa? / Com que roupa que eu vou / Pro samba que você me convidou?"

- Noel Rosa, em "Com que Roupa?" (1930)

Harmonicamente, Noel também era inovador. Ele criava melodias que "passeavam" pelos acordes de forma inesperada, mas perfeitamente lógica, criando uma união entre letra e música que era única. Ele provou que o samba podia ser um veículo para a poesia, a crônica e a filosofia popular.

Noel Rosa, jovem, com seu violão, em uma foto icônica que representa o poeta do samba.

Noel Rosa, o "Poeta da Vila", que com seu violão e sua genialidade lírica, deu ao samba a sua cidadania urbana.

Pixinguinha e Noel Rosa, embora nunca tenham sido parceiros, são os dois pilares sobre os quais a moderna música popular brasileira foi construída. Um deu a ela a sofisticação harmônica e rítmica; o outro, a sagacidade poética e a crônica social. A partir deles, o caminho estava aberto para a próxima grande revolução, uma que levaria o nome do Brasil para o mundo inteiro com uma batida diferente: a Bossa Nova.

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