Se a Bossa Nova foi a trilha sonora de um Brasil otimista que se modernizava, a música que dominou a segunda metade dos anos 60 foi a crônica de um país que perdia sua liberdade. Com o Golpe Militar de 1964 e o endurecimento do regime, a canção popular brasileira tornou-se uma das mais potentes armas de resistência. Os palcos dos Festivais da Canção, transmitidos pela televisão para todo o país, transformaram-se em arenas políticas onde jovens artistas usavam metáforas e poesias para driblar a censura e dar voz à angústia de uma nação.
Os Festivais: Uma Arena para a Nação
Os festivais de música popular, promovidos por emissoras como a TV Record, tornaram-se o epicentro da cultura nacional. Milhões de pessoas assistiam, torciam e debatiam as canções como se fossem a final de uma Copa do Mundo. Era nesses palcos que novos talentos eram revelados e que a direção da MPB era disputada. A competição musical era, na verdade, uma competição de ideias sobre o futuro do Brasil. Foi nesse ambiente fervoroso que a "canção de protesto" floresceu, utilizando a inteligência da letra para comunicar o que não podia ser dito abertamente.
Os festivais da canção: palcos onde a música se tornou a voz de uma nação em tempos de repressão.
Geraldo Vandré e o Hino que Desafiou a Ditadura
Nenhum momento simboliza melhor a coragem dos festivais do que a final do Festival Internacional da Canção (FIC) de 1968. O compositor paraibano Geraldo Vandré (1935-) apresentou sua canção "Pra Não Dizer que Não Falei das Flores (Caminhando)". A música era uma convocação direta à resistência contra a ditadura, com uma melodia simples e uma letra contundente que se tornou um hino instantâneo.
A canção perdeu o primeiro lugar para "Sabiá", de Tom Jobim e Chico Buarque, sob uma vaia ensurdecedora do público, que já havia escolhido seu verdadeiro vencedor. A performance de Vandré foi um ato de desafio tão explícito que, poucos meses depois, com a decretação do AI-5 (o ato institucional que endureceu o regime), a música foi proibida e Vandré foi forçado ao exílio. "Caminhando" se tornou o símbolo máximo da canção de protesto e da perseguição sofrida pelos artistas.
"Vem, vamos embora / Que esperar não é saber / Quem sabe faz a hora / Não espera acontecer... / Pelas ruas, marchando / E cantando e seguindo a canção / Aprendendo e ensinando / Uma nova lição."
- Geraldo Vandré, em "Pra Não Dizer que Não Falei das Flores (Caminhando)" (1968)
Chico Buarque: O Mestre da Metáfora
Enquanto Vandré era direto, Chico Buarque (1944-) tornou-se o mestre da sutileza e da metáfora. Com uma formação que bebia tanto no samba de Noel Rosa quanto na sofisticação da Bossa Nova, Chico desenvolveu uma habilidade única de criticar o regime de forma poética e inteligente, criando canções que passavam pela censura, mas cujo recado era perfeitamente entendido pelo público.
Em "Apesar de Você" (1970), ele usou a figura de uma autoridade doméstica para falar do ditador, com um refrão falsamente otimista que foi cantado em todo o Brasil até ser proibido. Em "Cálice" (1973), feita em parceria com Gilberto Gil, ele usou a homofonia entre "cálice" e "cale-se" para criar um lamento angustiante sobre a censura e a repressão. Como vimos na série "Desvendando a Música", a harmonia pode criar emoção. Chico é mestre em usar acordes menores e dissonâncias para sublinhar a angústia e a tensão de suas letras, criando obras de arte completas onde música e poesia são inseparáveis.
Chico Buarque, o mestre da palavra, que usou a poesia e a metáfora como armas de inteligência contra a censura.
A era dos festivais e da canção de protesto mostrou que a MPB era muito mais do que entretenimento. Era um espaço vital de debate, identidade e resistência. Enquanto Chico Buarque refinava a crítica através da poesia, um outro movimento, igualmente perseguido, surgia na Bahia, propondo não apenas a crítica, mas a ruptura total com as tradições. Era a hora da antropofagia musical do Tropicalismo.
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